top of page

Pela Liberdade de Envelhecer - Karla Monteiro

Minha amiga genial costuma brincar que o “etarismo” seria um conceito maquinado pela CIA. Acreditando que não temos idade, empurradas por hormônios e botox, seguimos firmes, trabalhando até a morte. Em tempos de hipercapitalismo, afinal, aposentar-se não figura entre as possibilidades. Ao terminar de ler “Sobre os ossos dos mortos”, da polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Nobel de Literatura, de 2018, pensei nela, na minha amiga genial. Ela se apaixonaria por Janina Duszejko, a narradora deste romance impagável, uma mulher velha que não tem o menor pudor de ser exatamente isto: uma mulher velha.

Impossível colocar “Sobre os ossos dos mortos” numa caixinha. Ao mesmo tempo, um romance noir, daqueles com vários cadáveres e um assassino insondável, uma ácida comédia feminista e um drama filosófico. Sobre o cenário, Janina nos conta: “Nosso planalto teria, então, o formato de uma meia-lua cercada de um lado pelos Montes de Prata, uma pequena e baixa cadeia de montanhas, compartilhada entre nós e os tchecos, e, do outro lado, o lado polonês, pelas Colinas Brancas”.

Já nas primeiras páginas, ela nos arrebata. Sarcástica, brilhante, engraçada e profundamente atormentada pela imbecilidade humana, exerce com uma liberdade invejável – e hilária – o papel que lhe cabe naquela estranha comunidade: a idosa que pode dizer – e fazer – absolutamente o que lhe dá na telha, pois, há muito tempo, deixou de ligar para o que os outros pensam. Talvez o ageísmo, o preconceito por idade, seja a primeira questão contemporânea a saltar da obra. Mulher, sozinha, sem filhos e, sobretudo, velha, só restará à Janina romper todos os limites para que sua voz seja ouvida.

Ela se divide entre três paixões: a astrologia, a luta incessante contra os caçadores de animais e William Blake. Diga-se de passagem, o livro é um hino ao poeta inglês. “Por que matar um animal é esporte e matar um ser humano, assassinato?”, Janina se pergunta. Olga Tokarczuk a construiu com tal maestria que a sensação é que a qualquer momento ela vai sair caminhando pela sala, reclamando das moléstias crônicas. Uma de suas manias é colocar apelido nos vizinhos, conforme suas características: Pé Grande, Esquisito, Boas Novas.

“Que falta de imaginação ter nomes e sobrenomes oficiais. Ninguém jamais se lembra deles, pois são tão banais e alheios à pessoa que não possuem nenhuma ligação com ela”, comenta: “Além disso, todas as gerações têm suas modas e, de repente, todos se chamam Margarida, Patrício ou – deus me livre – Janina”.

O mistério se instaura na trama quando Pé Grande aparece morto. À primeira vista engasgara-se com o osso de uma corça por ele assassinada. Porém outros cadáveres vão surgindo em cena, enterrando, aos poucos, a tese da morte acidental. Janina levanta a sua própria linha de investigação: a vingança dos animais, que estariam dando o troco nos predadores humanos. A esta altura, eu já me preparava para fechar o livro, temendo que bichos começassem a falar. Tenho sérios problemas com realismo fantástico. A reviravolta, porém, logo viria, surpreendente, como cada linha no denso, divertido e anárquico romance de Olga Tokarczuk. Em tempos obscurantistas, “Sobre os nossos ossos” é um libelo contra a estupidez.



KARLA MONTEIRO nasceu em Diamantina (MG). Formou-se em jornalismo pela PUC-Minas, trabalhou nos jornais Estado de Minas, Folha de S.Paulo e O Globo e nas revistas Veja, Trip/ TPM, entre outras. É autora de Karmatopia: Uma viagem à India, coautora de Sob pressão: A rotina de guerra de um médico brasileiro e autora de Samuel Wainer: o homem que estava lá.



Comments


bottom of page