top of page

O Réveillon e o Jovem - Karla Monteiro

“Como é difícil perceber que o tempo passou por mim”: escrevi esta frase no meu caderninho de anotações na primeira manhã em Itamambuca, uma linda praia de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Então, 28 de dezembro, a poucos dias da virada do ano, reconheci, de estalo: eu envelheci. Estava revolta, nublada, fora do lugar naquele paraíso de expectativas para 2024. Até há pouco, não houve idade. Os anos passaram sem peso, enquanto eu vagava pela minha instabilidade emocional e, sobretudo, instabilidade geográfica. Mas mudou – e mudou de uma hora para outra. Da noite para o dia, olho nos olhos dos outros e não me reconheço. Caminhando naquela praia de areia dura, rumo ao rio que emoldura o cenário, só pensava nisto: estou irremediavelmente velha. A curva dos 50 pega uma reta. Mas talvez isso não seja exatamente ruim.

 

Na nossa casa, ao contrário do que ia dentro de mim, reencontrei-me com a mocidade. Éramos 11 pessoas. Numa belíssima e confortável casa, mas éramos 11. Praticamente um Big Brother, com direito a dois adolescentes e uma garotinha de oito anos, a Marina. Entre os onze, somente um jovem – levando-se em consideração a quantidade de colágeno. “O Jovem”, atraindo a atenção das moças, ciente daquele poder irresistível da pele que convida. A rotina se instaurou. Ao farto almoço, emendávamos o violão, a cerveja, a cantoria, os flertes inconsequentes. De repente, o tempo que tanto pesava até a caminhada inaugural na praia nem havia passado. Por certo, envelhecer é uma decisão. Em meio a tudo, nossa team leader sacou um livreto da cartola. Aliás, abro algumas linhas para ela, a combinação perfeita de eficiência e descontração. Se houvesse a cura hétero, talvez eu a pedisse em casamento. Amo de paixão, amiga para a vida inteira. Ainda tomaremos limonada numa varanda da velhice.

 

Pois bem, o livro: “O Jovem”. “Há cinco anos, passei uma noite inapropriada com um jovem estudante que vinha me escrevendo havia um ano e queria me encontrar”, iniciou Annie Ernaux, a francesa que venceu o Nobel e nos ganhou com sua série de livros autobiográficos. Ela tinha, então, 54 anos. E ele, 30 anos a menos. As noites de sexo obcecado se sucederam. E os dois acabaram por engatar um relacionamento. Como em todos as obras de Ernaux, nada é só uma coisa. Desta feita, ao narrar o romance com um garoto, explora classe social, idade, tempo, memória, gênero, poder, vida e morte. “Eu estava numa posição dominante”, contou. Com o esfriar do tesão, vai acontecendo a mágica. Ao ser colocada em contato com a pessoa que já fora, com as melhores e piores coisas de se ser jovem, Ernaux depara-se com o fato: que bom que o tempo passou. Reconectada com aquilo que foi, decide que o caminho está adiante.

 

Não acredito que “O Jovem” seja o livro de iniciação na obra de Annie Ernaux. Eu começaria por “Os Anos”, que nos proporciona um contato avassalador com a sua voz literária. Mas, ler “O Jovem”, naquela casa, naquela praia, com os amigos felizes madrugada adentro, foi como dar ordem a sentimentos desconexos, entrincheirados, procurando ar. O reconhecimento da passagem dos anos pode ser extremamente libertador. “Um dia, enquanto almoçávamos num café em Madri, tocou “Don’t Make Me Over, música de Nancy Holloway. Nesse momento eu revi o alojamento universitário de moças em Rouen, e minha busca, na Rue Eau-De-Robec e na Place Sain-Marc, totalmente desnorteada, pela placa de um médico que aceitasse fazer em mim um aborto”, rememorou Ernaux, pouco antes de terminar a curta narrativa: “Parecia-me, cada vez mais, que eu poderia acumular imagens, experiências, anos, sem ter nenhum outro sentimento além da própria repetição”.






Comments


bottom of page