Não é exagero dizer que nunca a humanidade foi testemunha viva e presente de tantas mudanças fundamentais que afetarão todos os aspectos das nossas vidas, nos anos que nos restam.
O amanhã já é anteontem.
No século XX, a cada 20 anos notavam-se mudanças realmente transformadoras: pense em avião, televisão, transistor, viagens espaciais e internet.
No século atual, essas mudanças enormes já ocorrem a cada 5 anos, com o sequenciamento genético e o fMRI (que permite ver o cérebro “ao vivo”) , a popularização da internet, do celular e da IA.
"Popularização", aliás, é um termo importante de se pensar, já que cada vez mais as novas tecnologias chegam mais rápido às massas. Nem sempre de maneira linear. Entre a primeira vez que você ouviu que alguém tinha um computador em casa, até o tempo em que todas as pessoas têm um no bolso, passou-se um piscar de olhos. A Inteligência artificial foi inventada em 1956, mas só agora é que virou assunto de rodinhas.
Para os próximos anos já se especula que a AGI (IA generalista que pode fazer tudo que um ser humano faz) chegará em 2025. Em 2028, a medicina personalizada nos fará esquecer que tomamos o mesmo comprimido de pessoas completamente diferentes. Em 2030, interface cérebro-computador, que o Musk está desenvolvendo com a Neuralink, já deve estar disponível por um preço -por enquanto é de graça, pra quem quiser ser cobaia. Em 2032 especulam que, com o aperfeiçoamento da edição genética feita com CRISPR, teremos o fim das doenças hereditárias.
Em 2035 a energia fusionável, que é infinita e barata, já estará operante, possibilitando tarefas mecânicas enormes e talvez o fim do uso de combustíveis fósseis. Esperam que em 2038 chegaremos ao desenvolvimento sustentável global, em que paramos de destruir tudo para viver sem despedaçar o planeta.
Se não conseguirmos alcançar a façanha destrutiva antes e chegarmos vivos até lá, parece mesmo fantástico o que nos espera pros próximos 15 anos! Faça as contas da sua idade hoje, e imagine-se nesse “novo tempo”.
Agora, reconsidere toda essa lindeza, pensando no gap tecnológico entre ricos e pobres e as questões sociais que vão emergir disso. É curioso constatar como é fácil empolgar-se com previsões técnicas maravilhosas que simplesmente omitem a complexidade das sociedades. Assunto pra uma outra coluna….
Você está aqui e lá ao mesmo tempo. E os mortos estão vivos. Isso é bom?
Lex Fridman entrevistou Mark Zuckerberg no Metaverso. Lex é, certamente, um dos podcasters mais influentes do mundo. Os episódios raramente duram menos de 2 horas e ele fala de política, filosofia, ciência, inteligência artificial, cultura, tecnologia e várias outras coisas. Zuckerberg é o dono do Meta (Facebook, Instagram e Whatsapp, já ouviu falar?). Metaverso é …bem, segundo Russ Rive, CEO da SuperUber e da SuperViz - duas companhias carioquíssimas que já trabalham há muito tempo nisso: “Metaversos são experiências imersivas que criam a sensação de estar em realidades paralelas, sejam reais ou inventadas, usando tecnologias para estimular nossos sentidos da mesma forma que a realidade-base faz, criando assim uma convincente sensação de presença”. Em cinco expressões, ele conseguiu definir do que se trata: experiência, presença, sentidos, realidade-base e realidade paralela.
Em outras palavras, trata-se de um ambiente que se vivencia através de aparelhos audiovisuais como visores, fones e, ocasionalmente, ferramentas hápticas (como se fosse uma luva para sentir o tato de uma imagem, por exemplo). Na sua forma mais simples, a gente pode experimentar o Metaverso apenas vestindo um headset (basicamente uns óculos com fone). Para a realidade virtual (RV ou VR), você coloca a traquitana na cabeça e passa a ver apenas o que se passa lá dentro, que reage à posição dos seus olhos e do seu pescoço. Na realidade aumentada (RA ou AR)é como se esse visor fosse transparente e você visse as coisas que ele projeta inseridas no mundo “real” à sua volta. Na verdade, em geral, não é transparente, já que há câmeras registrando “o real”, mas isso é detalhe.
O que importa é que você pode estar sem ir, a/em qualquer dimensão. Pode visitar uma cidade, um planeta, uma reunião chata ou uma célula do nariz de um sapo (sapo tem nariz?), sem sair do sofá, acreditando que está lá.
Para alguém conhecedor de tecnologia (Lex é cientista da computação, com PhD do MIT) e tão corajoso que entrevista presencialmente o Netanyahu para logo em seguida falar com o poeta e ativista-contra-Israel Mohammed El-Kurd, foi um tanto surpreendente vê-lo agir quase como uma criança diante do novo headset que lhe economizou a passagem aérea e lhe permitiu ficar cara-a-cara com um dos empresários mais polêmicos (e poderosos) das 7 Big Techs.
Headsets já estão por aí há mais de 50 anos, mas agora chegamos a um outro nível de rapidez e de realismo, que vai “mudar tudo”.
Essa expressão, "mudar tudo", está quase cansativa! Tem horas que eu queria que nada mudasse, sabe!?
Mas, como assim?
Antes da entrevista, os dois passaram por uma espécie de scanner corporal no qual foram digitalizados os movimentos (principalmente do rosto e da cabeça) de cada um para criar um avatar ultra realista - e não aqueles bonequinhos caricatos que vemos por aí…
Em vez de realmente transmitir um vídeo do seu rosto que, para ser realista precisaria de uma internet incrivelmente rápida, o pulo do gato foi codificar as expressões de cada um e mandar esse código de um lado para o outro. Assim, em cada ponta da linha, o interlocutor é reconstruído ao vivo, como se fosse um vídeo, a partir dos parâmetros que foram escaneados.
Até aí, é tecnicalidade. Lex, que mesmo em momento raro de deslumbramento, consegue extrair poesia do espanto, comentou como a imersão tinha menos a ver com a "perfeição da imagem" quanto com a captura das pequenas e sutis "imperfeições" da face, as ruguinhas do riso nervoso…
O Zuck rebateu que essa era “uma questão”, que havia gente que queria ser retratada de maneira menos "transparente" e gente que queria ser mais expressiva."Eu mesmo", ele disse, "sou criticado porque meu rosto não indica minhas emoções, posso estar super feliz, e só revelo um sorrisinho" (maroto).
Ou seja, nesse metaverso programável, você pode se transformar num Poderoso Chefão Marlon Brando minimalista e esconder suas emoções numa poker face digna de Oscar, ou transformar sua cara fria e sem graça num caretudo ultra expressivo.
Hologram love?
É claro que essa tecnologia vai chegar num ponto em que as traquitanas gigantes serão apenas óculos com aparência de "normais". A Meta, em parceria com a Ray-ban, já lançou óculos com câmera que gravam e transmitem direto pro facebook e instagram suas lives.
Especulam que, em cinco anos, iremos a conferências e festas onde conviveremos "naturalmente" com uma mistura de pessoas e hologramas, sem nem saber a diferença entre quem está fisicamente ali e quem não está.
Zuck diz: "Qualquer tela, qualquer mídia, qualquer livro, qualquer peça de arte pode ser tão efetiva como holograma quanto objeto físico". Eu ainda duvido! Nessa o Lex rebateu: "Eu quero beber cerveja na praia com meus amigos. Amigos reais na praia real!!! Para reunião de trabalho, tudo bem, mas pra vida pessoal, não quero isso, não!". Ufa! Desce duas!
Quem já experimentou realidade virtual e aumentada, sabe do desconforto que há em nada mais ter peso, em as coisas acontecerem sem qualquer esforço. É difícil definir, mas dá uma angústia horrível! Eu detesto torneira “automática”, e você?
A digitalização da alma criativa.
Lex então desandou a ponderar que os tais avatares têm um lapso de tempo entre o scanner e a conversa em si. Então, a pessoa podia estar lá, toda malhadinha e maquiada pro scan e depois “ir” na reunião de pijama, parecendo estar toda arrumada. Ou seja, estaremos congelados no metaverso numa imagem fixa. Some a isso o fato de que já é uma realidade corrente a “digitalização da alma criativa”, na qual treinamos as máquinas a responder com os nossos valores, no nosso estilo. Todo mundo já consulta o ChatGPT pra perguntar como o falecido Steve Jobs responderia à sua questão, ou como Shakespeare escreveria tal história.
Eu, vocês, nós todos, não temos um passado, meu amor.
Pense nos benefícios de haver dois de você, três vocês, milhares de milhões de bilhões de você interagindo por aí sobre tudo o que você cria, pensa e faz. Imagina que você é presidente de uma empresa com vários problemas pra resolver. Simplesmente, o seu avatar pode reunir-se simultaneamente, olho no olho, com vários departamentos, decidindo como você, em forma de avatar, decidiria, em cada uma das variáveis que aparecesssem.
Se você acha que isso é o futuro, sorry, é o passado jurássico da semana retrasada. A Meta já anunciou que vai lançar os chatbots de Snoop Dogg, Kendall Jenner e Naomi Osaka que além de pensarem e conversarem como eles, têm, obviamente, a mesma voz e aparência. Na próxima vez que eu for jogar meu ping-pong virtual, com uma mesa que num estalo de dedos está na minha sala, já tenho a oponente perfeita, Naomi! Minha Jamaicana-Japa favorita!
Conversar com quem já partiu
E o que dizer do resultado mais óbvio disso que será a conversa, em tempo real, com nossos afetos que partiram? Se a voz está digitalizada, se a imagem está encodada, se o conteúdo do que a pessoa disse está armazenado e pode ser recombinado, poderemos em breve ter conversas com os mortos.
Imagine crianças se relacionando com avós que nunca viram na vida real? Imagine a paranoia generalizada que vai rolar quando as pessoas ficarem se relacionando doentiamente com seu ex! Ainda bem que existem terapeutas de IA pra lidar com isso! (#Não!)
O Zuck já está preparado pra isso, ele mesmo já vende "memórias de Facebook" para os parentes dos mortos e diz que "não damos acesso às mensagens privadas da pessoa". Ou seja, o que seu amado falou em público, você guarda. O que falou no privado, só o Facebook lê. É de se supor que vai ter uma assinatura premium para esse mercado da bisbilhotagem.
Você é uma pechincha!
Basicamente, a Meta está investindo na habilidade de estar imerso e sentir-se presente com pessoas em volta de você, que importam-se com você. Ou seja, ele quer que estejamos conectados num Facebook imersivo permanente.
Zuckerberg foi um dos primeiros a perceber que o ouro está no que chamam de UGC, o user-generated content. Para quê gastar dinheiro produzindo alguma coisa num mundo que todo mundo quer se exibir? O que ele fez foi dar um passo além: ganha dinheiro vendendo publicidade e dados no canal do conteúdo que você produz para ele, de graça.
Quanto você acha que sua existência vale? Sério, diz um número! Pois é, o ser humano continua a ser a matéria prima mais barata do mundo. Quão barata? $10 dólares por cabeça..
Explico: A União Européia, que é bem mais consciente dos direitos sobre dados que os EUA e qualquer outro país, quer impedir o Facebook e semelhantes de fazer anúncios personalizados para os usuários, sem consentimento explícito deles. Ocorre que, como isso (tudo que você pensa e consome) é a mina de ouro da empresa, a Meta quer compensar isso estipulando um preço para o Facebook por assinatura. Ou você paga US$ 10,49 e tem anúncios genéricos, ou você entrega a sua alma e pode curtir quantos vídeos de gatinho você quiser.
Você vale menos que um bom gin tônica. Se valoriza, amiga!
Sua cara, sua voz, fazendo um estelionatinho?
Enquanto isso, “o maior YouTuber do mundo", MrBeast, que tem quase 200 milhões de assinantes, abriu o berreiro no X (Ex-Twitter) mostrando que fizeram, com IA, um vídeo deepfake dele vendendo Iphones por 2 dólares para quem clicasse num link. “As plataformas de mídia social estão prontas pra evitar isso?! “, ele perguntou. Claro que não, Mr!. Pelo contrário, elas estão é trabalhando dia e noite pra fazer mais e melhores deepfakes.
Faltou o Lex colocar o Mark contra a parede sobre isso, deslumbrado que estava. Eu adoro o podcast dele, mas, nesse episódio, poderia ter sido mais incisivo. Continua com crédito. Até quando, eu não sei.
O que você acha? Tá vendido, alugado, ou só
deslumbrou-se um pouquinho? Cartas para a redação.
Tem coisas que é melhor lembrar e outras que é melhor esquecer.
Recebi um email da Rewind que me oferece um pingente que grava absolutamente tudo que eu falar e tudo o que falam comigo.
Pra quem usa esse software no celular e no computador, sabe como é incrível buscar algo, em sites, fotos, documentos e conversas que você não tem idéia de como armazenou, mas se lembra que tem algum registro daquilo. Com o pingente no pescoço, imagina você pesquisar pela conversa que teve no fim da festa no ano passado, depois do quinto gin, sobre um assunto "incrível" que você não se lembra mais.
A companhia diz que é “o mecanismo de busca da sua vida”. Um google de você mesmo. É seu personal big brother, gravando absolutamente tudo e tendo acesso a tudo. Somado à câmera, é como se sua memória fosse infinita. Pra quem se preocupava com os efeitos do THC na memória, ou em anotar coisas pra não esquecer, é um adianto… Custo do pingente? Menos de 5 vocês no Facebook.
E você com isso?
Como você se sentiria com memória infinita? E se clonarem você pra vender um produto que você detesta? E se você pudesse ir sem sair de casa? Gostaria de conversar com os mortos?
Deixe aqui seu comentário, compartilhe o post ou escreve para inteligenciahoje@gmail.com dizendo o que gostaria que fosse tratado na próxima coluna.
Abraço,
Felipe Lacerda
FELIPE LACERDA é profissional do cinema e da TV com filmes que já ganharam ou foram indicados para prêmios como Oscar, Bafta, Urso de Ouro, Golden Globe e Emmy. Tem mestrado em negócios pelo IBMEC e formação em Cinema pela New York Film Academy.
Seu interesse pela inteligência artificial e a consciência humana começou na adolescência, quando começou a ler sobre esses temas. Quando o assunto chegou ao grande público, concentrou- se em duas áreas: a estratégica, que trata das consequências cognitivas, políticas, econômicas e socias; e a propriamente técnica, na qual concentra-se em Prompt Engineering e na IA Generativa para a criação de texto, música, imagens.
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