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Filosofia e Arte - Cecília Fortes

Reflexões sobre os desafios da criação, o apreço pelas artes e a desconstrução de estereótipos. Obra de arte, artista e espectador.

O clichê da página em branco. Muito se fala sobre o desafio da tela ou da folha em branco, na qual a pintura, a literatura e a música se originam. Por onde começar? Como começar? Compor algo inédito, envolvente, que gere encantamento. É comum pensar que a dificuldade está no vazio, partir do zero, enfrentar o nada. Eu gosto mais da interpretação do filósofo francês Gilles Deleuze que sugere que o artista, ao iniciar o seu trabalho, não se vê diante de uma superfície vazia a ser preenchida. Muito pelo contrário, ele se depara com uma tela ou uma página que, apesar de branca, está tomada por todos os clichês existentes, imagens conhecidas e sentimentos pré-concebidos. E precisa vencer essas imagens para criar algo novo e único, o que demanda tempo. O tempo próprio da pintura, da literatura, da música. O tal tempo da criação, de confronto do clichê, amadurecimento da ideia e nascimento de um estilo próprio do autor que dará origem à obra de arte. Ao se referir à literatura, por exemplo, Deleuze citava uma reflexão de Marcel Proust e dizia que um grande escritor é capaz de criar uma língua estrangeira na sua própria língua. A expressão de um estilo original que apresenta um mundo original. Mas como fazer? Não existe fórmula pré-determinada. É um processo que não se dá de um dia para o outro, trata-se de uma longa estrada. Cada artista desenvolve um caminho individual e particular. E com tempo e maturidade, conquista um estilo que lhe é tão característico e único que se transforma em assinatura, tornando os seus trabalhos facilmente identificáveis.

O clichê do homem culto. A arte é uma poderosa ferramenta de expressão e também de reflexão. Diante de signos artísticos, o espectador se vê como que desafiado a entender o sentido daquele signo e busca traduzir, interpretar o que se apresenta. Uma obra de arte estimula o espectador a repensar conceitos pré-existentes e criar novos pontos de vista. A questão do efeito da obra de arte sobre o espectador aparece nas reflexões de outro filósofo francês, Jacques Rancière. No livro “O Espectador Emancipado” ele defende que a experiência de interação com uma obra de arte é particular a cada pessoa. Todo espectador, seja ele familiarizado ou não com o universo artístico, traz consigo referências de experiências já vividas, conhecimentos adquiridos em outras situações e, diante de um signo artístico, faz as suas próprias associações que geram reflexão. Não existe forma única de interpretação. Não há certo ou errado. E justamente por isso, a apreciação da arte não está restrita a conhecedores, acadêmicos, intelectuais ou colecionadores. Todos nós somos dotados da mesma capacidade de traduzir signos em outros signos e fazer conexões, adquirindo assim novos conhecimentos. Rancière também elabora sobre a forma de interação do espectador com a arte. O que aparenta ser uma relação apenas passiva, de pura contemplação, tem em si atividade. Assim como para Deleuze o artista não se defronta com uma tela vazia, para Rancière o espectador não é uma página em branco. Ele observa, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros lugares. Traz com ele conhecimento e referências de outras experiências vividas, signos apreendidos em situações diversas e faz as suas próprias conexões. Compõe seu próprio poema com o poema que tem diante de si. Como diz o filósofo, o poder que cada um tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de relacionar isso com a sua aventura intelectual singular, o torna semelhante a qualquer outro, à medida que essa aventura não se assemelha a nenhuma outra.




CECÍLIA FORTES é curadora e gestora de artes visuais. Em fevereiro de 2022, assumiu a curadoria do recém-inaugurado Centro Cultural da PGE-RJ, localizado no antigo Convento do Carmo, edifício do século XVII tombado pelo IPHAN por sua relevância histórica. Suas exposições reúnem talentos em ascensão e renomados artistas brasileiros, como forma de fomentar o cenário artístico local. De 2012 a 2021, foi Studio Manager de Adriana Varejão. Cecília é pesquisadora de mestrado em Filosofia pela PUC-Rio. É graduada em Administração de Empresas e pós-graduada (Lato Sensu) em Arte e Filosofia pela PUC-Rio. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

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